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  • Foto do escritorGuilherme Sant'Anna - Psicólogo

PSICOnews | Somos feitos de histórias

“Nenhuma terapia dinâmica pode alterar os fatos de uma vida, mas pode, isso sim, alterar a narrativa dos fatos – e talvez isso seja decisivo”.

Começo o texto com a frase de Contardo Calligaris, um psicanalista italiano muito querido no Brasil que faleceu nesta semana, deixando saudades e uma obra admirável. Meu primeiro contato com o autor foi no seu livro “Cartas a um jovem terapeuta”, e suas reflexões certamente me ajudaram a definir alguns rumos em minha vida.


Esse encontro meu com o livro (e com o autor) é algo que faz parte da minha história e que eu conto de determinadas formas. O próprio acontecimento - a história factual, o evento - e a narrativa que faço dele - a história que eu conto - são partes de mim. Acho um tanto clichê dizer que nossas histórias nos constituem, pois essa noção aparece em vários lugares e na voz de pessoas muito conhecidas como Martin Luther King Jr, Eduardo Galeano, Mia Couto… Ainda que seja clichê, nem sempre compreendemos como as histórias nos fazem como somos.


A frase de Calligaris diferencia duas coisas: os próprios acontecimentos e as narrativas sobre eles. Por exemplo, em 1500, portugueses atravessaram o Atlântico em caravelas e chegaram ao litoral do que hoje é o Brasil. Podemos contar isso de algumas formas, como o “descobrimento do Brasil” ou como o “início da invasão portuguesa”. Outro exemplo é o da disputa narrativa em torno do que ocorreu em 31 de março de 1964 no país - sendo denominado de “golpe civil-militar” ou de “revolução”.


Mudar a narrativa sobre os acontecimentos não muda o passado, ou seja, chamar de uma coisa ou de outra não transforma o que efetivamente aconteceu. Mas a forma com que narramos os eventos, sejam da história mais ampla ou das nossas vidas, é decisiva, por ter efeitos no presente e no futuro. Isso porque, quando uma narrativa muda, não mudam apenas palavras - mudam formas de se apropriar dos acontecimentos.


Certamente, o espaço para interpretações sobre os acontecimentos não é ilimitado, ainda mais quando não se trata da história apenas da sua vida. A história de um país é compartilhada, não basta você pensar que houve uma “revolução” em 1964 para que isso seja uma interpretação válida e comum - há disputas de poder, é preciso encontrar justificativas para ela e convencer às demais pessoas (nesse exemplo específico, algo difícil). Mas, ainda que você não precise justificar a narrativa de sua história de vida para toda uma sociedade ou torná-la uma interpretação comum, isso não quer dizer que seja fácil recordá-la e contá-la de outro modo.


A dificuldade de revisitar a própria história tem a ver com trazer dores à tona, olhar para as próprias cicatrizes e tratar de feridas ainda abertas. Também, de se distanciar um pouco do agora e tentar evocar os sentidos que estavam presentes na época em que algo aconteceu, para tentar compreender melhor. Talvez, aquilo do qual você tem mágoa, se culpa ou se arrepende hoje, no passado parecia o melhor caminho, ou o que era possível de se fazer. Recordar a história tem a ver com desmanchar alguns monstros e descobrir novos, com perceber que o passado se mantém vivo no hoje nos efeitos do que provocou, mas também no jeito com que nos apropriamos dele.


Acredito que você consiga lembrar de experiências difíceis que viveu no passado, mas que hoje entende e narra de outra forma. Posso me lembrar de algumas coisas que me ocorreram na infância e, à época e durante algum tempo, foram sofridas. Hoje me aproprio delas sem tanto sofrimento, às vezes até com saudade. Ou então, tem acontecimentos que, quando ocorreram, não eram considerados tão ruins. Porém, com o tempo e com novas compreensões, eles ganham outro sentido. Aquilo que para uma criança era uma brincadeira esquisita com um adulto, mais tarde pode ser revisto como uma violência sexual.


O que se pode conquistar com o trabalho da recordação não fica lá no passado - a memória ajuda a contar uma história e, assim, a transformar o presente e o futuro. A transformar, enfim, a vida. É nesse processo de transformação que uma terapia pode ajudar - essa é a interpretação que faço da frase de Contardo. Termino com um pensamento da historiadora brasileira Emília Viotti da Costa, aposentada de seu cargo de professora em 1969 por se opor à ditadura no Brasil. Para mim, recuperar esse pensamento dela é também uma forma de manter a memória viva. Julgo a sua frase apropriada não só pela ideia que contém, a qual pode ser pensada em termos de povo ou de cada vida singular, mas também pelas circunstâncias atuais:

“Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

* Foto por Laura Kapfer no Unsplash.

Guilherme Sant'Anna é psicólogo (CRP 05/57577) formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online, se você quiser entrar em contato pode fazê-lo pelos seguintes meios: Instagram: https://www.instagram.com/guilhermesantanna.psi/ E-mail: guilhermesantpsi@gmail.com Medium: https://medium.com/@guilhermesantannapsi Whatsapp: (21) 988021858

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