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PSICOnews | Quando a vulnerabilidade aparece no calcanhar

  • Foto do escritor: Guilherme Sant'Anna - Psicólogo
    Guilherme Sant'Anna - Psicólogo
  • 23 de fev. de 2021
  • 3 min de leitura

É comum que se viva a vida como se nossas condições presentes fossem garantidas. Geralmente não refletimos sobre como a mobilidade corporal, nossos sentidos, nossa capacidade cognitiva, enfim, nossas vidas mesmas são frágeis, expostos a inúmeras mudanças. É certo que, num nível de pensamento, sabemos de possibilidades que nos ameaçam, mas nem sempre vivemos a experiência de nos sentirmos vulneráveis. Isto é, não achamos que vai acontecer com a gente. Essa experiência, a de se sentir vulnerável na sua existência, não depende exclusivamente de acontecimentos perigosos ou violentos. É possível viver rodeado de perigos e não se sentir ameaçado por eles, ou então num ambiente considerado muito seguro e ainda assim temer pelo que pode acontecer.


O que costumo ver acontecer é, em dada situação, seja num contexto em que a vulnerabilidade está mais ou menos evidente, algo acontecer que faz despertar para fragilidade da vida, para a finitude da existência, para a solidão, enfim, para variados aspectos de nossa vulnerabilidade. E esse despertar pode ser súbito, como no presenciar um acidente, numa experiência de quase morte, num pesadelo, etc. Ou lento, com o passar dos anos mostrando aos poucos os perigos do viver. Ou, ainda, pode-se morrer sem pensar nisso, o que não nos torna menos vulneráveis a essas possibilidades.


Lembro de dois mitos que abordam esse tema de maneira interessante. O primeiro, provavelmente mais conhecido, é o de Aquiles. Esse herói mítico da Grécia antiga era um semideus, filho da deusa Tétis e do rei Peleu. Era conhecido por ser o melhor guerreiro, praticamente invulnerável. Uma das versões de sua história conta que sua mãe, Tétis, resolveu banhá-lo no rio Estige, o rio que separa o mundo dos vivos do dos mortos para torná-lo imortal, uma vez que seu pai era humano. Acontece que Tétis segurou Aquiles pelo calcanhar, e as águas não banharam essa parte de seu corpo. Tempos depois, na guerra de Tróia, justamente seu calcanhar foi o local atingido por uma flecha envenenada disparada por Páris, que levou o herói à morte.


Outro mito que aborda a questão da vulnerabilidade é o de Balder. Na mitologia nórdica, Balder é filho de Odin e Frigga. Certa vez, Balder tem um pesadelo com sua própria morte. Sua mãe, Frigga, teve o mesmo sonho. Como os sonhos eram entendidos como proféticos, Frigga se preocupou e, para proteger o filho, foi pedir para que todas as coisas do mundo jurassem não machucar Balder. A única coisa a que ela não perguntou foi uma pequena planta trepadeira, por ser considerada pequena e desimportante demais. Assim, não se considerava que ela poderia machucar o deus. Loki soube disso e preparou um dardo com essa trepadeira, dardo esse que viria a matar o deus Balder e a desencadear o Ragnarok, o evento da destruição dos deuses.


Nesses mitos, algumas coisas me chamam a atenção: a primeira é a preocupação das mães e as tentativas de escapar à vulnerabilidade - as mães de Aquiles e Balder lançam mão de estratégias para torná-los invulneráveis. A segunda, é que essas estratégias acabam por demonstrar suas insuficiências, mesmo no caso dos deuses, que dirá na existência humana. A terceira, é que o ponto de vulnerabilidade é justamente algo considerado irrelevante, desimportante. Os heróis não morrem por lesões graves, mas por uma flecha no calcanhar e por um dardo feito com uma planta.

E como esses mitos ajudam a refletir sobre nossas vidas? Aqui proponho algumas questões, que podem contribuir para mostrar como cada um de nós lida com a vulnerabilidade na existência: em quais situações agimos como as deusas, mães de seres vulneráveis, e tentamos contornar a vulnerabilidade de modo absoluto, como se tivéssemos esse poder? Quando somos como Aquiles ou Balder, julgando-nos invulneráveis? E, por fim, quais são nossos calcanhares ou dardos de trepadeira, os pontos em que a vulnerabilidade nos toca especialmente?

Guilherme Sant'Anna é psicólogo (CRP 05/57577) formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Realiza atendimentos de psicoterapia online, você pode entrar em contato com ele pelos seguintes meios:


*Na foto uma escultura que representa a morte de Aquiles, esculpida por Ernst Herter.


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