PSICOnews | Como Sherlock Holmes e Dom Casmurro me levaram para a Psicologia
A leitura me capturou ainda pequeno. Quando eu tinha uns 10 anos, me encantava com as histórias de Sherlock Holmes. Era impressionante como o detetive tinha a capacidade de revelar aquilo que, aos olhos de todos, eram mistérios. Era como se a verdade dos acontecimentos saltasse aos olhos de Sherlock, como se ela estivesse só o esperando chegar à cena do crime para se apresentar.
Ler suas histórias era, para mim, participar de um mundo em que fantasia e realidade se misturavam. Por um lado, ele fazia tudo parecer simples, elementar. Por outro, tamanha era a perspicácia do detetive que as resoluções dos crimes pareciam fantásticas. Li tudo o que pude dele na época.
Segui lendo livros diversos, até que aconteceu um outro encontro - dessa vez com Machado de Assis. Eu tinha 15 anos, Dom Casmurro foi o primeiro e último livro paradidático que me envolveu. Mesmo quem não o leu pode associá-lo à pergunta: “Capitu traiu Bentinho?”. Aliás, infelizmente, esse texto clássico costuma ser reduzido a essa questão. Porém, o Guilherme que leu Dom Casmurro já não era o mesmo do Sherlock - eu já não lia com olhos de detetive.
O que me fascinou e ainda fascina no livro é podermos entrar na pele de um homem que se tornou amargurado por julgar ter sido traído e, por ser uma narrativa em primeira pessoa, não sabermos se ele foi mesmo traído. A verdade objetiva da traição, a qual Sherlock certamente encontraria, não era importante para a transformação de Bentinho em Dom Casmurro - a possibilidade da traição, naquilo que Bentinho via, já bastava. O ponto em Dom Casmurro era outro: a experiência de alguém que se transforma por uma obsessão, pelo ciúme, narrada por ele mesmo.
Ler essa história me fez atentar para um outro tipo de verdade, a verdade que é construída, que tem a ver com como experimentamos a vida. Essa verdade não está pronta esperando alguém revelá-la, ela depende do que vemos e em como juntamos esses elementos numa história. E o mais fundamental: ela determina muitas das nossas experiências.
O realismo psicológico de Machado de Assis foi uma das coisas que me levou a estudar Psicologia, assim como os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” levaram Bentinho a desconfiar de Capitu. Penso que tomei esse caminho por fazer mais sentido para mim tentar compreender uma experiência do que encontrar a verdade dos fatos. Por me interessar mais pela conversa que eu poderia ter com Bentinho do que com um interrogatório de Capitu. Tomei esse caminho, enfim, por gostar de ler, não apenas livros, mas de ler a vida. E pra ler de verdade não basta ficar nas palavras, é preciso ir além. Como adverte Guimarães Rosa:
“A vida é também para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por linhas tortas...”.
Guilherme Sant'Anna é psicólogo (CRP 05/57577) formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios: Instagram: https://www.instagram.com/guilhermesantanna.psi/ E-mail: guilhermesantpsi@gmail.com Medium: https://medium.com/@guilhermesantannapsi Whatsapp: (21) 988021858
*Foto do Real Gabinete Português de Leitura, uma linda biblioteca localizada no centro do Rio de Janeiro que contava com a frequência de Machado de Assis no fim do século XIX.
Comments