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Foto do escritorGuilherme Sant'Anna - Psicólogo

PSICOnews | Querer é poder? A receita do desespero


Passar mais tempo com quem amamos, exercitar-se mais, aprender algo novo, ter refeições mais saudáveis - muitas podem ser as metas de ano novo. Tão numerosas quanto as metas podem ser as frustrações, já que nem sempre conseguimos concretizar o planejado. Agora, em março, é provável que você já tenha desistido de algumas delas, por motivos diversos, e talvez tenha se desesperado por isso. As metas frustradas são um dos exemplos de acontecimentos que podem nos levar a desesperar, pois é na estrada da frustração que anda o desespero, orientado pela distância entre o que se quer e o que se pode.


Se essa imagem do desespero é difícil de entender, imagine que você é uma criança. Vem um adulto e te convida para uma festa - brincadeiras, doces, guaraná, tudo isso e as várias alegrias de uma festa te invadem. Tomada pela imaginação, você aceita o convite rapidamente. Sua euforia, no entanto, não dura muito: assim que seus pais ficam sabendo da proposta, eles dizem que você não poderá ir.


Assim acontece o desespero pelas possibilidades, Kierkegaard diz, por meio do pseudônimo Anti-Climacus: quando, como crianças, aceitamos os convites desconsiderando que precisamos da autorização dos pais. Ou seja, quando dizemos sim às possibilidades, perdendo de vista que existem condições necessárias em nossas vidas, limites para o que de fato conseguimos realizar. Na analogia, o convite para a festa pode ser qualquer possibilidade que nos agrade, como as metas de ano novo; os pais, por sua vez, podem corresponder a inúmeras condições como nossa saúde física, nosso tempo de vida, nossas habilidades físicas/cognitivas, os recursos disponíveis etc.


Eis a receita para o desespero: querer aquilo que não se pode. Porém, a questão não é tão simples, dado que os limites humanos são variados. Sabemos que humanos podem nadar, mas isso é verdade pra você? Humanos podem pilotar aviões, mas você pode? Ou, ainda, você consegue não se estressar com um/a filha/o, comprar uma casa, não adoecer, gostar de matemática? Existe, então, uma distância entre as possibilidades do gênero humano e as possibilidades reais de cada um/a de nós. Também, mais amplamente, uma distância entre o que é desejável e o que é possível para todas/os nós (pode-se querer muito não envelhecer, mas isso ainda não é possível, assim como não adoecer, ou não morrer).

Sobre isso escreveu Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, ao abordar uma doença da alma característica do mundo cristão, a qual ele chama de romantismo. Nas palavras dele:

“O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e (…) É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.

A doença de que ele fala, portanto, é a de desejar o impossível como se possível fosse. Embora o mundo diga que basta querer para poder, é preciso reconhecer que as coisas dependem de condições necessárias para acontecer. No desespero pelas possibilidades, perdemos de vista o chão comum da vida, e assim podemos acabar querendo a lua como se fosse possível adquiri-la, querendo, enfim, aquilo que não se pode conseguir.


Felizmente, não estamos desamparadas/os no tratamento dessa doença da alma. Kierkegaard, por exemplo, diz que o oposto do desespero é a fé, quando o “eu” se relaciona consigo mesmo querendo ser si mesmo e, por isso, é capaz de repousar no poder que o estabeleceu. Nas minhas palavras, experimentamos a fé quando reconhecemos nossa condição existencial e a abraçamos, estando entregues ao que nos vem ao encontro.


O problema é que acolher quaisquer possibilidades que nos ocorram é uma tarefa extremamente difícil, visto que elas podem ser terríveis aos nossos olhos. No entanto, considero o aprendizado do querer como um caminho para conquistarmos uma certa resistência a essas possibilidades indesejadas, para nos proteger do desespero e nos conduzir à fé. Nessa escola do querer, talvez alcancemos momentos de fé, nos quais queremos o aberto e incerto, a existência tal como ela se apresenta. Aí, não que a vida fique muito mais fácil, como se as dificuldades simplesmente sumissem. Mas, com menos desespero, o modo como experimentamos a vida, o sabor dela, se transforma.


Guilherme Sant'Anna é psicólogo (CRP 05/57577) e mestre em Psicologia Social formado pela UERJ. Ele realiza atendimentos de psicoterapia online e, se você quiser entrar em contato, pode fazê-lo pelos seguintes meios:


*Os livros que cito no texto são: O Desespero Humano, de Soren Kierkegaard; e o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.

*Foto por Tim Marshall no Unsplash

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