PSICOnews | Quando falta ar, falta alma
Nessa semana, fui tomado pelas notícias da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus. A notícia já seria ruim o suficiente se fosse em qualquer outro lugar, mas em Manaus, cidade pela qual tenho um carinho especial, foi pior.
Lembrei-me da minha sensação de respirar lá pela primeira vez. Manaus fica no meio da Amazônia, e a floresta te invade pela respiração, um ar quente e muito úmido, com níveis de umidade que superam os 90%. Quando saí do avião, parecia que entrava em uma sauna mas sem cheiro de eucalipto, um ar pesado, um calor de vapor.
Em pouco tempo, fui conquistado pelas árvores majestosas, pelo tucumã, pelo cupuaçu, pela pupunha, pelas chuvas estrondosas, pelo tambaqui na brasa… Poder ver a floresta tão perto da cidade, em sua abundância e diversidade, foi magnífico. No tempo em que morei lá, plantei diversas árvores perto da minha casa.
As árvores, e muitos outros seres vivos, se conectam conosco pela atmosfera: as plantas realizam fotossíntese, consumindo gás carbônico e liberando oxigênio na atmosfera; as plantas, e também os animais, respiram, consumindo oxigênio e liberando gás carbônico.
Respiração, tão essencial, e ao mesmo tempo invisível. Pode-se passar uma vida inteira sem pensar muito na nossa dependência com relação ao trabalho das plantas e das algas, nossa dependência de uma atmosfera com ar respirável, se você tiver a sorte de ter acesso a isso sempre. Porém, tenho certeza de que as pessoas que estavam nos hospitais em Manaus, seus familiares e amigos e os profissionais de saúde passaram por um horror tremendo.
O sufoco que senti aqui foi mais na alma do que físico, mas lá faltou oxigênio, e as pessoas sufocaram física e psiquicamente. É certo que, em nossa vida cotidiana, as fronteiras entre experiências físicas e psíquicas não são tão definidas. Mas a falta de ar que senti não me matou, assim como a falta de ar sentida em um ataque de pânico, apesar de dar uma sensação de morte, não costuma matar. Lá as pessoas morreram por isso, e é duro saber que não foi por falta de capacidade humana. A questão não se resume ao domínio técnico: não é que falte tecnologia, que não saibamos armazenar, transportar e administrar o oxigênio.
O ponto é que, quando se deixa faltar ar, é porque falta alma. A palavra grega “psique”, a qual compõe “psicologia”, “psiquiatria”, significava “alento, sopro, respiração” e, posteriormente, “alma, espírito”. Não só os gregos antigos relacionavam a alma à respiração, encontramos relações nesse sentido em práticas meditativas nas antigas Índia e China, nos mitos de diversos povos, etc.
Nos dias de hoje é comum compreendermos “alma” ou "espírito" como algo que cada humano possui, individualmente, e que difere do “corpo”. Não gosto dessa compreensão, primeiro por tratar os humanos como especiais em detrimento de todos os demais seres vivos. Segundo, porque nossas almas não são algo apartado do corpo e individual, mas sim encarnadas e compartilhadas com demais seres que habitam a terra e a atmosfera. Terceiro, por considerar a alma como algo garantido, e não como algo que podemos conquistar, algo do qual podemos nos aproximar ou afastar. Quando humanos deixam outros humanos morrerem por falta de ar, seja por desinteresse, negligência, crueldade, interesses financeiros, julgo estarem afastados dessa experiência de alma. Afastados da experiência de saber que vivemos uma existência compartilhada pelo ar com seres que nem imaginamos, em interdependência. Que o ar que inspiramos, que nos dá espírito, provém de algas, cianobactérias, plantas, e que dele dependem uma infinidade de seres vivos.
É nesse âmbito que a Psicologia deve permanecer. Penso haver mais entendimento sobre a psique, sobre a alma do mundo, nos povos que, por terem essa compreensão mais ampla, plantaram e cultivaram a floresta amazônica por milênios, do que em nossa sociedade que promove a sua destruição e a asfixia de nossos semelhantes. Mesmo que ações individuais como plantar árvores perto de casa ou doar cilindros de oxigênio estejam no sentido de melhorar alguma coisa, elas são muito pouco. É um tanto ilusório pensar que a resolução de problemas coletivos sairão de ações individuais isoladas. Não são ações estritamente individuais que farão com que se valorize mais a vida do que interesses políticos e financeiros, ou impedir que se consiga lucrar em cima da destruição da floresta. Se estamos realmente conectados através do ar, cabe a nós nos articularmos e construirmos em conjunto um mundo em que não falte ar, mas, principalmente, em que não falte alma.
*Tirei a foto em 2015, do alto da torre de observação do Museu da Amazônia, em Manaus, após uma tremenda chuva.
Guilherme Sant'Anna é psicólogo formado pela UERJ e atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social nessa mesma universidade. Realiza atendimentos de psicoterapia online, você pode entrar em contato com ele pelos seguintes meios:
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