Roberto Ferreira | A pandemia e a história
Afora o prazer intelectual em desvendar os caminhos percorridos pelas civilizações, um dos maiores intuitos de estudarmos história é para não repetirmos ad infinitum os erros do passado. Trata-se de um processo de elevação do estágio civilizatório, a nível de sociedade, muito parecido com aquele, a nível individual, quando refletimos sobre nossas próprias atitudes e comportamentos, quando a partir da autocrítica crescemos individualmente.
Um dos conceitos que ficam martelando a minha mente, desde que li “Era dos Extremos – O breve século XX”, de Eric Hobsbawn, foi sua definição de historiador, como sendo aquele que insiste em lembrar a seus contemporâneos tudo quanto eles fazem questão de esquecer, o que parece se ajustar à luva com o que acontece agora, com a pandemia de COVID-19.
Correm aos milhares nas redes sociais, como andorinhas, propostas de novenas, rezas e orações, não só em prol dos doentes, como para que deus se apiede e acabe com o vírus causador da doença, o SARS-CoV-2, e recebo todo dia, de variadas fontes, dezenas desses pedidos.
Eu até entendo o desespero de se ver impotente contra um ser invisível e mortal, com apenas cerca 200 milionésimos de um milímetro, que pode estar em qualquer lugar, por mais escondido que seja, pronto a ceifar sua vida ou a de qualquer ente querido, mas se queremos reagir com eficiência, temos que recordar o que foi feito nas pandemias graves anteriores, por que passou a humanidade.
Em janeiro de 1918 apareceu o primeiro caso de uma Influenza A H1N1 no Condado de Haskell, no Kansas, EUA, que rapidamente viajou com as tropas estadunidenses que estavam sendo enviadas para lutar na I Guerra Mundial, se alastrando por todo o continente com tanta velocidade, que as autoridades dos países em guerra proibiram os jornais de noticiarem, com medo de espalhar o pânico e o sentimento contra a guerra; somente a Espanha, que era neutra na guerra, passou a noticiar a epidemia, sendo por isso conhecida como “Gripe Espanhola”.
A tal “Gripe Espanhola” tinha muitas características parecidas com a COVID-19, ou seja, era transmissível diretamente, de homem para homem, tinha uma taxa de mortalidade parecida e evolução rápida. Morreram cerca de 30 milhões de pessoas em todo o mundo, em uma sociedade que não conhecia antibióticos, respiração forçada, etc.
A sociedade em 1918 contava com uma porcentagem muito maior do que a de hoje de pessoas religiosas, e estas eram presumivelmente muito mais fervorosas do que os atuais fiéis, que em todas as religiões conhecidas então, rezaram para seus deuses pouparem-nos de tantas mortes e sofrimentos. De nada adiantou – o vírus era ateu!
A ciência quase nada conhecia sobre os vírus, então a única arma era o isolamento social. Depois de conhecido que o agente da doença era um vírus, epidemiologistas aconselharam o “lockdown”, ou seja, o confinamento obrigatório da população. As cidades que implantaram o confinamento social tiveram muito menos mortos e se recuperaram economicamente mais rapidamente, em contraste com aquelas que abriram mão deste expediente epidemiológico, com alta porcentagem de mortos e maior queda econômica. Antes disso, no século XIV, uma bactéria hoje extinta – Yersinia pestis – também causou uma pandemia que causou entre 33 a 50% da população européia, e cerca de 30% da população mundial.
No século XIV a sociedade européia era dominada pela Igreja católica, tão abrangentemente, que virtualmente a totalidade da população era religiosa. Concomitantemente, o fervor religioso fazia com que a fé daqueles cristãos em seus deuses e santos fosse tão grande, que o mais fervoroso cristão atual seria quase um herege naqueles tempos. Todos estes cristãos fervorosos rezaram anos e anos, ofereceram os sacrifícios os mais diversos, penitências, autoflagelações, etc., mas de igual forma a bactéria não acreditava em deuses e nem em santos, e continuou sua sanha de morte sem se importar com as orações.
Mas mesmo naquela época a ciência propunha ignorar a fé no combate à doença, com o notável Médico Guy de Chauliac prescrevendo, em lugar das orações, o distanciamento social e a purificação do ar, com fogo inclusive (ele, na qualidade de Médico do Papa Clemente VI, cercou-o com tochas, só permitindo que se lhe falasse a mais de 4 metros de distância—o Papa sobreviveu!).
Agora, em pleno século XXI, vemos repetir-se a mesma história!
Pessoas que realmente acreditam em seu deus, oram a ele pedindo proteção e tendem a se crer protegidas, logicamente relaxando nas recomendações de Médicos e Epidemiologistas – distanciamento social, higiene mais frequente das mãos, etc. Novamente tem os historiadores que lhes lembrar que orações, rezas, oferendas a santos, deuses e entidades metafísicas, não surtem nenhum efeito sobre vírus, bactérias, protozoários, etc., todos absolutamente descrentes em deuses. Crer nessas coisas só fará você “baixar a guarda”, relaxar do estado de constante sobressalto, que, este sim, potencialmente fará com que você sobreviva à pandemia.
Esqueça a oração, confie na ciência e sobreviva!
Roberto Ferreira da Costa, Policial Civil aposentado, estudou Biologia na UFRJ e trabalhou com controle de insetos transmissores de doenças na FEEMA - Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente
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